Alguém me disse, com olhos doces mas com emoção acesa, que tinha tido a ilusão de um mundo melhor durante a passagem de ano e a desilusão de sofrer com o apocalipse e o fim do mundo nos dias imediatamente a seguir: as mortes nos pavorosos incêndios na Austrália; e o terrorismo protagonizado por Donald Trump, a procurar, em última e derradeira jogada, impedir a sua suspensão como Presidente dos Americanos, dando-lhes em troca o que a seu ver é um paraíso de justiças duvidosas: mais uma guerra.
Não sei porque associação de acasos, passo pela banca dos jornais a comprar alguma informação, que cada vez mais é um espartilho, o que pinga do funil dos que ainda acham que a verdade a que temos direito pode ser redigida e publicada, e ao lado de títulos indecorosos e de um ou outro mesmo pornográfico, para não falar de um desfile infinito de banalidade e imbecilidades desejosas de converter leitores à causa do cérebro apagado, ali mesmo, uma surpreendente reedição de um livrinho de 1898, chama-me com mais de cem anos de atraso. É de Júlio de Matos e é um ensaio (ensaio pathogenico sobre os delírios sistematizados) sob o título A Paranóia. É difícil encontrar um título mais ajustável aos primeiros dias deste ano, depois de sabermos que os portugueses gastaram milhões em roupas, perfumes e brinquedos, em que os sem abrigo continuam assim mesmo, sem abrigo, e que as desigualdades sociais são espantosas, indecorosas e pornográficas como os títulos dos jornais, onde se celebram ordenados de administradores, justiça adiada, alguma dela para sempre e os múltiplos sinais exteriores de riqueza de alguns farsantes.
Júlio Xavier de Matos foi um notabilíssimo psiquiatra português (natural do Rio de Janeiro, onde nasceu em 1857). Licenciou-se em Medicina na Escola Médico-Cirúrgica, em 1880 e foi professor. (A Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa foi um estabelecimento de ensino superior na área da Medicina e Farmácia criada pelo governo presidido por Passos Manoel em 1836 por transformação da Real Escola de Cirurgia, fundada no Hospital de São José em 1825. Da sua fundação até 1911, ministrou o ensino superior de Medicina e Farmácia sendo então transformada na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, a qual manteve agregado a si o ensino de Ciências Farmacêuticas até 1918).
Júlio de Matos foi professor de Psiquiatria na Faculdade de Medicina do Porto e Diretor do Hospital Conde Ferreira da mesma cidade até 1911, data em que se transferiu para Lisboa. Na capital portuguesa, para além de ter dirigido o Hospital Miguel Bombarda de 1911 a 1923, foi ainda professor da cadeira de Clínica Psiquiátrica na Faculdade de Medicina e Professor de Psiquiatria Forense no curso superior de Medicina Legal de Lisboa.
O senhor Trump precisava muito de um homem com um currículo, com uma sabedoria assim, que o levasse ao tratamento e, em glória, à cura.
As condições climatéricas, empurradas pelo ser humano, criaram mais uma catástrofe, desta vez na Austrália. A cobardia humana, Trump, criou mais uma catástrofe para o Planeta. Hoje, as alterações climatéricas exigem a nossa mobilização total; hoje, a guerra faz-se a partir de uma régie, de uma central eletrónica, com visores e botões, com satélites e drones. As grandes potências gabam-se desses postos de comando, a que chamam C 3 i (controlo, comando, comunicação, inteligência). É a nova fórmula da cobardia, pois a paz requer toda a nossa coragem. E o termo inteligência para vir ali muito a despropósito.
Não sei o que responder aos olhos doces que me trazem emoções acesas. Não sei o que fazer com a paranóia de Trump. Não sei o que fazer, a não ser manter-me nesta luta de traduzir-me como posso: e posso apenas com palavras.
Alexandre Honrado
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